Quem foi Maria Madalena?

Durante séculos, a Igreja Católica Romana defendeu a ideia de que Maria Madalena e Maria de Betânia — irmã de Marta e Lázaro — eram, na verdade, a mesma mulher. Essa associação ganhou força principalmente após uma homilia do papa Gregório Magno, em 591 d.C., e permaneceu no imaginário cristão por muito tempo.
No entanto, a partir de 1969, o calendário litúrgico romano foi atualizado: Maria Madalena passou a ser celebrada em 22 de julho, enquanto Maria de Betânia (junto com seus irmãos) recebeu o dia 29. Essa separação reflete um entendimento mais moderno de muitos teólogos católicos e ortodoxos, bem como estudiosos protestantes.
Mas será que essa distinção resiste à análise dos evangelhos? Ou ainda há margem para considerar que essas duas mulheres notáveis possam ser uma só? Vamos mergulhar nas Escrituras e nas pistas históricas para responder essa pergunta intrigante.
A unção de Jesus
O ponto de partida dessa discussão gira em torno de um evento crucial: a unção de Jesus por uma mulher com um vaso de alabastro contendo perfume precioso.
Esse episódio é narrado pelos quatro evangelistas:
  • Mateus 26:6-13
  • Marcos 14:3-9
  • Lucas 7:36-50
  • João 12:1-8
Mas aqui começam as diferenças — tanto de contexto quanto de personagem.
O que cada evangelho diz?
  • Mateus e Marcos:
    A mulher não é nomeada. Ela unge a cabeça de Jesus em Betânia, na casa de Simão, o leproso. A unção é feita com um perfume caríssimo.
  • Lucas:
    A mulher também é anônima, mas identificada como “pecadora” da cidade. Ela unge os pés de Jesus com perfume e lágrimas, e os enxuga com os cabelos. O episódio ocorre em outro local, aparentemente na Galileia, no início do ministério de Jesus.
  • João:
    Aqui, a mulher finalmente ganha nome: Maria, irmã de Marta e Lázaro. Ela unge os pés de Jesus com perfume e os enxuga com os cabelos, como em Lucas. O local é novamente Betânia, e o episódio acontece seis dias antes da Páscoa.
Três diferenças entre as narrativas
  1. Parte do corpo ungida
    • Cabeça: Mateus e Marcos
    • Pés: Lucas e João
  2. Local
    • Betânia (próxima a Jerusalém): Mateus, Marcos, João
    • Local não especificado (possivelmente na Galileia): Lucas
  3. Tempo no ministério de Jesus
    • Início: Lucas
    • Fim (dias antes da crucificação): Mateus, Marcos e João
Essas variações levantam uma dúvida honesta: seriam eventos diferentes protagonizados por mulheres diferentes? Ou seriam variações estilísticas e literárias de uma mesma história?
E se for a mesma mulher?
O Evangelho de João nos oferece uma pista intrigante: ele afirma claramente que Maria, irmã de Lázaro, foi a mulher que ungiu os pés de Jesus (João 11:2).
“Esta Maria, cujo irmão Lázaro estava doente, era a mesma que ungiu o Senhor com perfume e lhe enxugou os pés com os cabelos.” — João 11:2
Mais tarde, no mesmo evangelho, Maria Madalena aparece como a mulher que vai ao túmulo de Jesus, levando perfumes para completar a unção fúnebre (João 20:1).
Ora, em Mateus 26:13 e Marcos 14:9, Jesus afirma que o gesto da mulher que o ungiu seria lembrado em todo o mundo. Se isso é verdade, faria sentido essa mulher reaparecer no momento da ressurreição, e quem aparece lá? Maria Madalena.
Dúvidas sobre identificação
Outro detalhe curioso é o tratamento dos nomes nos evangelhos. Por exemplo:
  • João nunca se identifica como autor diretamente, usando a expressão “o discípulo que Jesus amava”.
  • Mateus chama um dos apóstolos de “Levi, filho de Alfeu” e depois “Mateus”, sem conexão explícita.
  • Os nomes das mulheres na crucificação mudam de uma versão para outra.
Ou seja, não era prioridade dos evangelistas manter uniformidade na identificação dos personagens. Isso explica, em parte, por que Maria de Betânia poderia ter sido chamada de maneira diferente em outras narrativas — especialmente se fosse também conhecida como Maria de Magdala.
A geografia não é um impedimento
Alguns argumentam que Maria de Betânia (aldeia próxima a Jerusalém) e Maria Madalena (de Magdala, na Galileia) não podem ser a mesma pessoa por causa da diferença de localidade. Mas esse tipo de associação era flexível.
Veja só:
  • Jesus nasceu em Belém, mas é conhecido como Jesus de Nazaré, onde foi criado.
  • Paulo é chamado de Paulo de Tarso, por ser de lá, mas seu ministério foi itinerante.
Além disso, o termo “Maria de Betânia” nem aparece literalmente na Bíblia. O texto diz que Lázaro era de Betânia, e que ali moravam Maria e Marta — mas isso não exclui a possibilidade de Maria ter nascido em Magdala ou migrado depois.
São a mesma Maria?
Ainda que não seja possível afirmar com 100% de certeza, as evidências bíblicas e contextuais são fortes para considerar que Maria de Betânia e Maria Madalena poderiam ser a mesma mulher. Ela foi:
  • A mulher que ungiu Jesus com perfume.
  • A que chorou aos seus pés.
  • A que esteve com Ele na cruz.
  • A que o viu primeiro ressuscitado.
E, talvez por isso mesmo, Jesus tenha prometido:
“Em verdade vos digo: onde for pregado este evangelho, será também contado o que ela fez, para memória sua.” — (Mateus 26:13)